Todos já sabemos. As dimensões da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul são impressionantes; o estado vai precisar de recursos e esforços extraordinários para se reerguer; toda forma de solidariedade é desejável neste momento.
Mas devemos ir além e nos perguntar: quais ensinamentos esse doloroso episódio pode gerar? Que novas medidas preventivas podem ser adotadas em relação a fenômenos da natureza que se multiplicam em cenário de mudanças climáticas, tais como chuvas atípicas, inundações inéditas, ciclones, secas prolongadas e incêndios florestais?
No caso do Rio Grande do Sul, vale a pena focalizar o contexto histórico e não apenas o índice pluviométrico. Ver o filme e não a foto.
Em setembro de 2023 o estado viveu um grande desastre causado por fenômeno da natureza, só superado pela crise atual. Fortes chuvas causaram a morte de 54 pessoas naquele momento, a crise dos últimos dias tirou a vida de 78 pessoas e registra 108 desaparecidos.
Embora ambos os eventos tenham sido de rara intensidade, fenômenos climáticos de impacto no estado não são tão atípicos assim. É o que mostra o documento “Desastres Naturais no RS: estudo sobre as ocorrências no período 2003-2021”. Elaborado pelo Departamento de Planejamento Governamental, subordinado à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão do governo estadual, o trabalho contabilizou 4.230 eventos de desastres naturais no estado naqueles dezoito anos analisados, com 4,44 milhões de pessoas impactadas em maior ou menor grau em 482 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul.
Em suas considerações finais, o documento assinala as regiões mais vulneráveis e destaca em um dos trechos: “Os danos humanos ocorreram, predominantemente, nas CREPDECs (sub-regiões estaduais) 1 e 8, com maiores densidades populacionais, e na 6, na fronteira oeste” (área 1 é onde se encontra a capital Porto Alegre e área 8 é onde estão seis das cidades mais afetadas em setembro de 2023: Muçum, Lajeado, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, Encantado e Estrela).
“As CREPDECs 6 e 8 também se destacaram no número de danos materiais. Nesse sentido, faz-se importante o foco de ações da Defesa Civil de prevenção e mitigação a eventos extremos, principalmente nessas regiões”.
Especialistas argumentam que a região sul do Brasil (especialmente Rio Grande do Sul e Santa Catarina) é ponto de encontro entre massas de ar quente e úmido originárias da região norte do Brasil e massas de ar seco e frio provenientes da Argentina. Além de massas de ar quente e úmido produzidas no oceano Atlântico.
Essa é uma condição permanente, que tradicionalmente produz instabilidade climática, fortes chuvas e outros fenômenos. Em outras palavras, a tragédia deste momento no Rio Grande do Sul, embora de dimensões especialmente dramáticas, se insere em um contexto de permanente sensibilidade e riscos potenciais.
E se esse é um retrato da realidade nada mais lógico do que se ampliar a estratégia preventiva, aproveitando para criar processos que possam ser adotados tanto em nível regional como em âmbito nacional.
Vários aprendizados podem ser obtidos a partir da atuação da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (FEMA). Trata-se de um braço do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS) que tem como principal objetivo coordenar a resposta a desastres e situações emergenciais, para isso promovendo todos os anos grande número de encontros, seminários e treinamentos para agentes públicos de todo o país. Além de uma abordagem preventiva, a agência vai um passo além e participa ativamente nos esforços de planejamento e recuperação de áreas afetadas.
Por isso mesmo a FEMA define sua missão como a de ajudar as pessoas “antes, durante e depois dos desastres”. Cada catástrofe ocorrida no país funciona como ponto de partida para a revisão e a otimização de estratégias e procedimentos, visando melhores condições de enfrentamento de futuros eventos negativos que inapelavelmente voltarão a se manifestar.
Encerrado o pior ciclo da Covid-19, no início de 2022 a agência recomendava: “Ao se planejar para um novo ano, você deveria levar em conta emergências potenciais como essas (uma alusão a tornados, inundações, incêndios). Nós alinhamos quatro razões para que você esteja alerta”.
Segundo a FEMA, eram elas: “Ameaças de grande porte estão ficando mais frequentes” (resultado de condições meteorológicas mais severas resultantes das mudanças climáticas); “Um plano pode salvar sua vida, a vida de sua família e seus animais de estimação” (caso se esteja no controle da situação); “Estar preparado pode proteger o seu dinheiro” (pois diminui o risco da pessoa ser surpreendida, não saber como enfrentar o problema e perder os seus bens); “Estar preparado pode proporcionar melhor conexão com sua comunidade e seus vizinhos” (cidadania e sociabilidade).
Vêm do Banco Mundial outras constatações importantes. “Os impactos devastadores da COVID-19 sublinharam a falta de preparação por parte dos governos. É também claro ser pouco provável que a COVID seja a última crise que os países enfrentarão, com fenômenos meteorológicos extremos cada vez mais frequentes, vulnerabilidades financeiras elevadas e níveis crescentes de conflito em alguns países”. Foi o que escreveu a instituição ao final de uma série de debates internacionais que promoveu com foco em estratégias para enfrentamento de situações emergenciais. “Investir na preparação, em vez de esperar pela ocorrência das próximas crises, pode ajudar a prevenir perdas humanas e econômicas”, completa o Banco Mundial.
E pergunta:
“Que lições existem de crises passadas para ajudar a orientar futuros esforços de preparação? Como podem os governos aumentar a sua resiliência e melhorar as suas respostas às crises? Como podem os governos garantir que os esforços de preparação serão inclusivos e que ninguém ficará para trás?”
Crises e catástrofes não podem permanecer como temas circunscritos a um punhado de especialistas e, pior ainda, burocratas. Elas impactam milhões de pessoas e devem ser enfrentadas a partir de um novo patamar, mais inteligente e estratégico.
A gestão pública no Brasil precisa abrir espaço para novos enfoques e práticas, melhor planejamento e maior número de camadas de prevenção, pensando nos diferentes formatos de crises e situações emergenciais que, certamente, já estão a caminho. Se não formos mais propositivos vamos continuar a acusar sempre os mesmos golpes, catástrofe após catástrofe. E ficar apenas correndo atrás do prejuízo, literalmente.