O código, a lei, e o PL das fake news

Danilo Valeta é Gerente de Contas na IC 24 de maio de 2023
IC

A discussão que não estamos tendo sobre a questão das fake news e a regulamentação das redes sociais

Não há nada de preocupante no projeto de lei sobre liberdade, responsabilidade e transparência na Internet – o famoso “PL das fake news”. O texto não tem lacunas nem buracos que são verdadeiras ameaças à democracia. Nossos legisladores, que sempre demonstraram estrito rigor técnico ao dialogar sobre matérias relacionadas à internet, têm discutido a questão com sobriedade e republicanismo. O Brasil tem colaborado para as discussões globais sobre o tema, e tudo deve melhorar a partir do mês que vem, agora que as Nações Unidas me reconheceram como único e legítimo herdeiro vivo do último imperador romano e decidiu me coroar como Imperador Supremo da civilização ocidental. Por fim, apenas uma afirmação em todo esse parágrafo introdutório é verdadeira.

Toda e qualquer discussão responsável sobre a questão das fake news precisa começar reconhecendo que só faz sentido operacionalizar uma discussão pública nacional sobre o assunto quando as discussões públicas já se tornaram impossíveis, criando uma situação de ovo-ou-galinha da qual é difícil escapar. O problema da desinformação é, mais do que uma questão jurídica ou tecnológica, uma questão epistemológica. Precisamos chegar a um consenso sobre como vamos chegar a consensos daqui em diante. O problema é chegar nesse primeiro consenso.

O país que mais teve sucesso em combater as fake news foi a Finlândia, que resolveu atacar o problema direto na jugular. Em 2014, quando a discussão começou a vazar para fora dos círculos dos especialistas em cibersegurança, o país rapidamente remodelou seu sistema educacional para incluir alfabetização digital, lógica formal e teoria do discurso já na educação básica, ensinando as crianças a identificar falácias e avaliar argumentos de forma sistematizada. Aqui no Brasil, onde ainda estamos tentando fazer com que as crianças aprendam a ler e escrever depois de 12 anos na escola, precisaremos ser mais sutis.

O texto que está sendo discutido no congresso tem vários problemas, mas não vamos entrar nas minúcias: o cerne da questão é que a proposta trata o assunto de forma policialesca: vigiar e punir. Além de esquivar-se do foco central da questão (o desequilíbrio de poder entre as plataformas e a sociedade), essa metodologia é impraticável. Subimos mais de 500 horas de vídeo por minuto na Internet em 2022. Moderação automática não funciona, com os modelos mais avançados baseados em inteligência artificial entregando uma taxa de erro de até 40%. Se quisermos submeter 10% disso à moderação humana, precisamos de dezenas de milhares de pessoas empregadas no trabalho mais insalubre criado pela economia digital. E isso é apenas vídeo, agora temos que pensar em texto, foto, áudio etc.

Como a moderação robusta não é exequível, o “dever de cuidado” previsto em lei é necessariamente vago e indefinido, sujeito a interpretações. Como o “esforço razoável” de moderação entrega muito pouco, será simples estabelecer precedentes para escapar de multas, mesmo que sua plataforma esteja entulhada de conteúdo nocivo. Este problema já vem acontecendo na União Europeia, onde a GDPR (a LGPD deles), embora cheia de boas ideias e intenções, tem se mostrado bastante morosa na punição das infrações. Não é um modelo escalável. E escala, na internet, é tudo.

O código é a lei

Em seu seminal livro “Code and Other laws of cyberspace”, o jurista americano Lawrence Lessig constrói o argumento de que, em se tratando de computadores e internet, a melhor maneira de se regular uma conduta é programando-a diretamente no código-fonte das aplicações. O código-fonte – os zeros e uns que seu computador traduz em tudo o que você vê e faz em um dispositivo digital – é o árbitro final, pois nada acontece sem um código que permita que algo aconteça. O insight acabou se tornando um aforismo – “o código é a lei”. Ou seja, quem tem poder efetivo de regulamentação na internet é o código digital, que escala o quanto for necessário, e não o código legal, sujeito aos atritos do mundo analógico.

É em cima desse aforismo que vem se estruturando uma proposta mais robusta de resolução para a miríade de problemas que as redes sociais têm causado na vida pública – não só a questão das fake news mas também questões de privacidade, uso de dados e direitos autorais. Ganha corpo nas discussões sobre o tema nas democracias ocidentais um consenso (opa!) de que o problema das big techs está no big, e não no tech, e que podemos mitigar a questão obrigando as plataformas a adotarem padrões abertos e interoperáveis para os dados que trafegam nas redes sociais. Essa abordagem ficou conhecida como ComCom, da sigla em inglês para compatibilidade competitiva.

Todo serviço no mundo digital está sujeito a um fenômeno conhecido como “efeito de rede”. Se eu for abrir uma nova rede social hoje, meu principal problema vai ser convencer você a entrar nela – como não tem ninguém lá, a rede em si tem pouco ou nenhum valor. Então eu preciso paparicar meus potenciais clientes – tornar o serviço “exclusivo” permitindo a admissão apenas de pessoas convidadas pelos primeiros usuários, mostrar pouca ou nenhuma publicidade, me certificar de que os conteúdos que você quer estão chegando até você.

Mas a partir do momento em que você entra na rede, convencer seus amigos fica mais fácil, pois eu tenho um argumento adicional – você está lá. Quanto mais pessoas do seu círculo de amizades entram na rede, mais fácil fica convencer os que ainda estão de fora. Esse processo, em que o valor gerado pela rede aumenta exponencialmente com o número de usuários, é o efeito de rede.

Só que quando todos os seus amigos e familiares estiverem na minha rede, eu já não preciso mais paparicar nenhum de vocês. Ao contrário, eu posso entulhar a sua timeline de propagandas, posso priorizar conteúdos de “alto engajamento” (tipo discurso de ódio), posso até mesmo cobrar dinheiro de você para mostrar seus posts para seus próprios seguidores. E você vai engolir doses cavalares de abuso, pois sair da rede traz um custo muito alto – seus amigos, suas fotos, suas memórias, está tudo lá e terá de ser deixado para trás.

A compatibilidade competitiva é um modelo que permite que as diferentes redes troquem dados entre si, usando padrões abertos. Um exemplo simples de como um serviço baseado em comcom funciona é o e-mail: o motivo pelo qual uma pessoa com um e-mail @yahoo consegue se comunicar com uma pessoa com um e-mail @uol é porque, 60 anos atrás, chegou-se a um consenso de que os usuários estariam mais bem servidos por um sistema que padronizasse as comunicações e criasse competição entre os diferentes serviços.

Qualquer um pode abrir um serviço de e-mail e imediatamente começar a interoperar com todos os seus concorrentes, sem pedir licença, sem pagar royalties, sem trombar com muros e silos digitais. E se o seu provedor de e-mail começar com gracinhas, em 10 minutos você pode migrar todo o seu e-mail – incluindo histórico de mensagens e contatos – para um serviço concorrente. Outro exemplo de compatibilidade competitiva? Portabilidade de número de celular. Que atire o primeiro tijorola quem nunca migrou de uma operadora para outra como quem troca de calças.

Um padrão aberto e interoperável nas redes sociais permitiria que você trocasse uma rede social por outra da mesma forma que troca de provedor de e-mail – levando todo o seu conteúdo com você e mantendo a capacidade de se comunicar com quem ainda ficou na outra rede. Isso muda radicalmente os incentivos econômicos aos quais as empresas estão sujeitas, e manter condições adequadas de higiene no conteúdo deixa de ser um requerimento regulatório cuja fiscalização é humanamente impossível, para se tornar um imperativo de negócios – quem fizer melhor, leva a clientela.

Mais do que isso, padrões abertos e interoperáveis permitiriam melhor monitoramento por parte de reguladores, acadêmicos e representantes da sociedade civil. E também poderíamos incentivar e regular outros comportamentos futuros alterando o código-fonte base, que precisa ser operador por todas as empresas, pois o código é a lei. É uma forma de fazer com a praça pública seja, pelo menos em parte, pública de fato, aberta a todos. Ainda que se possam montar barraquinhas de negócios particulares sobre ela.

Essa abordagem tem sido discutida por especialistas, acadêmicos e ativistas digitais, e é o modelo favorito de gente graúda como Lina Khan, chairwoman da Federal Trade Comission (o órgão antitruste do governo americano) que tem dado muita dor de cabeça às big techs, e por Wojciech Wiewiórowski, chefe do departamento de proteção de dados da União Europeia, além de grupos de defesa dos direitos digitais e outros especialistas no setor. A Electronic Freedom Foundation tem um excelente paper que explica os prós e contras dessa abordagem.

Precisamos de regulamentação e de ação política? Categoricamente sim. Mas precisamos de regulamentação inteligente, sistêmica e escalável, à prova de futuro. Precisamos de regulamentação do século XXI. E o PL 2630/20, da forma que está hoje, não resolve. Podemos fazer melhor.

Claro que não cabe ao congresso brasileiro impor padrões interoperáveis globais aos gigantes de tecnologia, mas não estamos sequer tendo essa conversa ou participando das discussões internacionais. As discussões que rolam hoje na sociedade tentam nos convencer que a escolha que temos à nossa frente é entre menos democracia e muito menos democracia. Isso é uma falsa dicotomia, como qualquer estudante finlandês pode lhe explicar. Tem mais de uma maneira de descascar esse abacaxi.

Não caia em mais essa fake news.

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