Pelé: eu estava lá

Ciro Reis é CEO e Fundador da IC 06 de janeiro de 2023
IC

Cena 1: A cada jogo do #santosfc a repetição de um padrão, em qualquer estádio. Os alto-falantes ecoavam as escalações dos dois times. Como é de praxe, cada torcida vaiava as menções aos jogadores adversários, com uma exceção. No momento do anúncio do camisa 10 do Santos, o locutor fazia uma pausa, um suspense e anunciava com ênfase: “Número 10… #PELÉ“. E só se ouviam gritos e aplausos, no máximo acompanhados por murmúrios da torcida adversária, como se esta preferisse não provocar o Rei do futebol com as mesmas vaias destinadas aos jogadores comuns.

Ninguém me contou, eu estava lá. Desde criança, dezenas de vezes, frequentemente levado por um pai são-paulino deslumbrado (como qualquer mortal sincero) com a orquestra comandada por Pelé.

Cena 2: Santos e Atlético Mineiro, estádio do Pacaembu. Jogo empatado em 1×1 até os minutos finais. Bola no ataque do Santos em direção a Pelé. Corre em sua direção o zagueiro encarregado da marcação. Pelé engana o adversário que o cerca e, de costas para os outros atacantes do Santos, dá um salto e ainda no ar toca a bola de calcanhar para trás, desconcertando toda a defesa e deixando o companheiro Nenê na cara do gol. Santos 2×1 e final do jogo.

Ninguém me contou, eu estava lá. Um garoto hipnotizado com o gênio e agitando uma bandeira do Santos feita em casa. Se fosse hoje, a jogada seria saudada por comentaristas esportivos como uma “assistência genial” mas no território do Rei aquele era apenas mais um passe banal.

Cena 3: Final dos anos 1980. Pelé era uma espécie de embaixador do turismo brasileiro no mercado internacional. Na condição de jovem repórter, viajei com ele para a Alemanha como parte de um grupo de jornalistas a convite da Embratur, que organizara o roteiro. No aeroporto de Guarulhos um pequeno tumulto: muitos passageiros queriam conversar com ele e pedir autógrafos. Pelé gentilmente atendeu a todos na medida do possível, a caminho do embarque.

Chegada no aeroporto de Frankfurt e novo tumulto: jovens e velhos querendo se aproximar e pedir autógrafos. A seguir conexão para Bonn (capital da então Alemanha Ocidental) e horas depois jantar formal com grupo seleto de convidados na embaixada brasileira. O garçom italiano encarregado de coordenar os serviços estava deslumbrado por estar junto a Pelé e no meio do jantar, quebrando qualquer protocolo, interrompeu a conversa para pedir que o Rei autografasse uma camisa, argumentando que quando seu filho crescesse não perdoaria se ele não tivesse feito aquela intervenção.

Pelé tirou de letra, assinou a camisa e todos em torno da mesa acharam o máximo.

Ninguém me contou. Eu estava lá.

Cena 4: No dia seguinte uma festa enorme para centenas de crianças fora organizada pelas autoridades de Bonn e tinha Pelé como principal homenageado. Minha surpresa: crianças alemãs de 7, 8 e 9 ou 10 anos, que nem de longe tinham idade para tê-lo visto jogar, aplaudiam e gritavam freneticamente seu nome quando ele apareceu na varanda e acenou para aquela pequena multidão infantil. Na sequência, o chanceler da então Alemanha Ocidental Helmut Kohl interrompeu uma reunião importante apenas para se dirigir ao local e conversar com Pelé, sem dispensar uma sessão de fotos a seu lado. Detalhe: a reunião interrompida discutia o processo de reaproximação entre os dois lados de um muro de Berlim que já estava prestes a ser derrubado. E quem ficou esperando pela volta de Kohl foi o presidente da Alemanha Oriental, Erich Honecker.

Ninguém me contou. Eu estava lá, impressionado pelo alcance daquele mito situado acima de questões geracionais e das sensibilidades da diplomacia.

Cena 5: No dia 21 de junho de 2011 o Santos conquistava o tricampeonato da Taça Libertadores da América. Festa nas arquibancadas do estádio do Pacaembu e jogadores confraternizando em campo. Generoso, Pelé foi até o banco de reservas do Santos, puxou pelo braço o sempre discreto técnico Muricy Ramalho e o levou até o centro do gramado para que fosse saudado pela torcida. Era um gesto destinado a mostrar que, para além dos ídolos que fazem os gols, a vitória se constrói no dia a dia do planejamento, da liderança e do trabalho em equipe.

Sim, claro. Ninguém me contou. Eu estava lá.

 

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