A realidade virtual é uma realidade real, ou é só hype?
Reza a lenda que Dâmocles era um puxa-saco. Vivendo na corte do Rei Dionísio II de Siracusa (atual Sicília) por volta de 350 a.C., passava os dias lembrando o rei de suas fortunas: como era poderoso o seu exército, como eram férteis as suas terras, como era esplendoroso o seu palácio. Até o dia em que Dionísio perdeu a paciência e ofereceu a Dâmocles que eles trocassem de lugar por um dia: Dâmocles se sentaria no trono do rei, fazendo uso de todas as suas regalias e poderes, enquanto Dionísio ficaria na corte.
Dâmocles volta na manhã seguinte pronto para seu dia de rei, apenas para descobrir que Dionísio havia mandado pendurar uma espada sobre o trono, presa por um único fio de crina de cavalo, exatamente acima do lugar onde a cabeça de Dâmocles passaria o restante do dia. Vendo a precariedade da cena, Dâmocles implora ao rei para que ele possa deixar o trono e voltar ao seu lugar na corte.
Essa história entrou no anedotário da filosofia grega com o nome de “Espada de Dâmocles”, um adágio que nos ensina a mesma lição popularizada pelo Homem-Aranha: com grandes poderes, vem grandes responsabilidades.
“Espada de Dâmocles” era também o apelido carinhoso que os estudantes do MIT deram para a geringonça antes batizada de “Ultimate Display”, considerado o primeiro sistema de realidade virtual do mundo. O apelido veio do fato de que o headset era tão grande e pesado que precisava ficar suspenso por hastes metálicas ao teto do laboratório, para não quebrar o pescoço do usuário.
Criado em 1968 pelo pioneiro da computação gráfica Ivan Sutherland, o experimento iria revolucionar a forma como homens e computadores se relacionavam, permitindo a criação de ambientes virtuais onde expandiríamos os limites do conhecimento e das habilidades humanas – um “espelho que nos leva a um país das maravilhas matemático”, nas palavras de seu criador.
Mas meio século depois, as promessas da realidade virtual ainda não se concretizaram – e não por falta de tentativa. Para ficarmos só nas ocasiões em que os especialistas tinham certeza de que a realidade virtual chegou para ficar, tivemos produtos como o Videoplace (1975), VITAL (1979), DataGlove (1987), Sega VR-1 (1994), Virtual Boy (1995), Second Life (2003), Oculus Rift (2012), PlayStation VR (2014) e, agora, o tal metaverso. Na beira da estrada da história da tecnologia há um cemitério repleto de carcaças de antigos sistemas de realidades simuladas, e acima dos portões deste cemitério lê-se a frase: “a tecnologia ainda não estava pronta”.
“A tecnologia está pronta agora?”, você pergunta. E a minha resposta é: nunca acredite nos portões de um cemitério.
A realidade virtual parece pronta – a resolução melhorou, a capacidade de renderização se multiplicou alguns milhões de vezes, e a chance do usuário quebrar o pescoço diminuiu consideravelmente. Empresas gigantes comandadas por pessoas muito inteligentes têm colocado bilhões de dólares nos últimos anos para fazer a coisa finalmente virar.
Mas não virou – de novo. Em janeiro, a Microsoft praticamente extinguiu sua divisão de realidade virtual – pela segunda vez em uma década. Apple e Google e também cortaram fortemente seus times, além de congelarem novas contratações. A Tencent, que lidera as iniciativas na Ásia, está reavaliando seus planos. E a Meta, que inclusive rebatizou a companhia toda para sinalizar seu compromisso com a tecnologia, já não está mais tão empolgada assim, e reforçou em seu último anúncio de resultados financeiros que a empresa está colocando foco novamente nos carros-chefes da companhia – Facebook, Instagram e Whatsapp. Isso após gastar 20 bilhões de dólares para desenvolver um sistema que nem os próprios funcionários se deram ao trabalho de usar. Será a realidade virtual uma ilusão?
Qual é o ponto comum entre todos esses fracassos? Acontece que a realidade virtual é vítima das expectativas irreais, e não de tecnologias inacabadas. É uma solução em busca de um problema para resolver. Essa realidade virtual perene – que você usa para o trabalho, o lazer e tudo o resto – não vai se materializar. Quantas atividades do seu dia a dia você conseguiria executar de forma mais rápida e simples com uma tela amarrada na sua cabeça?
Existem aplicações muito inovadoras para a realidade virtual – engenharia, educação e saúde estão entre as mais interessantes. Mas essas aplicações acabam não recebendo a atenção que deveriam por uma expectativa de que a realidade virtual precisa transformar toda a sociedade para funcionar.
E se a realidade virtual não for uma tecnologia revolucionária – for apenas boa? As expectativas que montamos sobre a realidade virtual paira sobre a cabeça da tecnologia, tal qual a espada de Dâmocles, pronta para castigar a húbris das empresas que falharem em mudar o mundo todo de uma vez.
Talvez, ao invés de nos perguntarmos se a tecnologia já está pronta, deveríamos nos perguntar para o que a tecnologia já está pronta. A realidade pode ser virtual, mas as necessidades, essas são bem reais.