Vinte e seis palavras que criaram a Internet

Danilo Valeta, gerente de contas da Imagem Corporativa 16 de setembro de 2022
IC

A seção 230 do Communications Decency Act está em discussão na Casa Branca, e isso pode mudar radicalmente a forma como nos comunicamos

Há algo de podre no reino da Internet, e no último dia 08 de setembro, a Casa Branca promoveu uma audiência para tentar desvendar de onde vem o cheiro ruim. A sessão pretendia discutir a “responsabilização das plataformas tecnológicas”, e faz parte de uma promessa de campanha do governo Biden de combater práticas monopolistas no mercado de tecnologia.

O documento que saiu do encontro elenca seis pontos principais para apertar a regulamentação de plataformas tecnológicas e combater práticas monopolistas. São elas: 1) promover a competitividade no setor; 2) Aprimorar a privacidade online; 3) promover práticas e padrões que tornem a Internet segura para as crianças; 4) remover proteções legais especiais para grandes plataformas; 5) aumentar a transparência sobre decisões de moderação e uso de algoritmos; e 6) Impedir a discriminação baseada em decisões tomadas por algoritmos.

Como um trabalho em fase inicial, o documento é uma carta de intenções, e não um plano de ataque. Cada um dos seis pontos levantados acima é, de fato, um problema para a manutenção de uma Internet livre. Mas a forma de endereçá-los ainda é uma incógnita e o histórico do congresso americano em legislar sobre a Internet não é lá muito animador.

Mas o ponto que nos interessa aqui é o item 4, que consiste em, justamente, “consertar” uma lei que muitos argumentam ser uma enorme cagada legislativa: é a seção 230 do Communications Decency Act (CDA 230), uma das primeiras tentativas de legislar a Internet, que data do longínquo ano de 1996. Este trecho, apelidado pelos nerds que acompanham esse tipo de assunto de “as 26 palavras que criaram a internet”, estabelece que serviços online não podem ser responsabilizados judicialmente por conteúdo publicado por seus usuários. O análogo na lei brasileira é o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que também está sob ataque.

A CDA 230 é parente próxima de um outro axioma vital para a criação da Internet: a neutralidade da rede, que já foi assassinada em 2018. Nada mais é sagrado na teleologia das redes.

Como funciona: se eu publicar no meu perfil no Facebook algo que atente contra a lei – como por exemplo, incitar violência ou ódio contra uma minoria – toda e qualquer responsabilidade por aquele conteúdo recai sobre a minha pessoa, e não sobre o Facebook. O Facebook só é legalmente obrigado a suprimir minha publicação mediante uma ordem judicial.

Isso significa que o Facebook não precisa realizar uma inspeção de todos os conteúdos que são postados antes de mostrar esse conteúdo para outras pessoas – ele pode fazer uma moderação post hoc. Moderação prévia de conteúdo nessa escala não é factível, nem mesmo com as atuais tecnologias de moderação automatizadas – que, aliás, são desconcertantemente ineficientes.

Sem a CDA 230, não existiriam redes sociais. Ou blogs. Ou sites de compra com reviews de usuários. Ou jogos online. Ou qualquer outro serviço online onde você não só consome, mas também colabora e cria conteúdo, que é, basicamente, toda a internet moderna. Mas então, por que existe uma discussão sobre eliminá-la? O que aconteceu?

Monopólios aconteceram. A Internet de 1996 não tem muito a ver com a Internet de 2022, e nem falo de tamanho, abrangência ou tipos de serviços – falo da infraestrutura básica em cima da qual a Internet roda. Quando entrou em vigor, a CDA 230 visava proteger provedores de internet e de serviços de hospedagem de ter que esmiuçar todo e qualquer conteúdo que seus clientes porventura quisessem subir em seus servidores. A Internet era vista como uma miríade de pequenos e médios provedores semi-independentes que prestavam um serviço similar ao de distribuição de água – uma série de canos ocos e neutros por onde o conteúdo passava.

A Internet de 2022 não é mais feita de canos decentralizados, mas de grandes silos que concentram, dirigem ou monitoram praticamente todo o tráfego da Internet. 40 anos de descaso com questões antitruste nos EUA fez com que os grandes serviços de internet se concentrassem debaixo de apenas cinco holdings. As centenas de serviços que essas empresas operam se tornaram nossa nova praça pública, o lugar onde o discurso político de fato acontece. Isso dá a essas empresas um poder inigualável para guiar a opinião pública.

E a democracia, para funcionar como tal, precisa que a praça pública seja pública, e não privada. É aqui que o nó enrosca.

Quem está bancando o discurso contra a CDA 230? Muita gente, e por uma série de motivos diferentes. A ponta da lança é composta por grupos políticos radicalizados, preocupados com o fato de que seus apelos para a execução pública e violenta de seus oponentes políticos estejam sendo (segundo eles) injustamente categorizados pelas plataformas como retórica neofascista.

Antes da CDA 230, o entendimento legal geral era que se uma plataforma modera uma instância de racismo, ela precisa moderar todas as instâncias de racismo, caso contrário eu posso alegar tratamento preferencial. Nessa época, a posição juridicamente segura era deixar o esgoto escorrer a céu aberto. Com a CDA 230, as plataformas têm certa segurança jurídica e tempo hábil para realizar a moderação. Sim, às vezes é necessário um pouco de pressão popular para fazer a bola rolar, mas pelo menos há uma bola para ser rolada.

A outra ponta de lança a favor de mudanças CDA 230 são… as grandes plataformas da Internet. Pode parecer um contrassenso, mas vale lembrar que no fundo desse poço há uma questão iminentemente antitruste.

Se a CDA 230 for substituída por um conjunto de regras mais rígidas de moderação de conteúdo – rígidas o suficiente para só serem atendidas após investimentos multimilionários em tecnologias (defeituosas) de moderação automática – o que se cria é um cenário onde nenhuma empresa entrante jamais será capaz de competir com as gigantes que já possuem o caixa para realizar tais investimentos. O que deveria ser uma iniciativa antimonopolista acabará por cimentar os monopólios já existentes.

Preocupa o fato de que o texto produzido pela Casa Branca configure a CDA 230 como “proteções legais especiais para grandes plataformas tecnológicas”. Pois ela também protege as pequenas plataformas, as startups, os modelos de redes que a gente ainda não inventou. E as pequenas dependem muito mais da proteção da CDA 230 do que as grandes, que tem capital financeiro e político para se adequar ao que quer que venha pela frente.

Que a CDA 230 está defasada, isso não se discute. 1996 foi em outra era geológica da Internet. Mas se vamos ter essa discussão, temos que colocar as coisas nos temos corretos. E os termos que estão sendo usados hoje para descrevê-la são preocupantes.

Palavras importam. Foram necessárias 26 palavras para criar a Internet, mas será preciso um número bem menor para matá-la.

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